A escravidão africana

Uma pagina da historia do Brasil

Enquanto os indígenas forneciam um fluxo constante de trabalho escravo para os primeiros colonos, principalmente nas aldeias jesuítas, em meados do século XVI os portugueses estavam importando africanos escravizados em números substanciais para trabalhar em novas colônias açucareiras permanentes. Anos antes do início do comércio de escravos na América do Norte, mais pessoas escravizadas foram trazidas para o Brasil do que jamais chegariam à América do Norte britânica. O tráfico brasileiro de escravos continuaria por mais quase duzentos anos.

Os seguintes relatos em primeira mão da vida escrava fornecem um quadro mais completo da experiência de pessoas escravizadas, sua posição na sociedade e suas interações com senhores “brancos” e homens livres. É importante notar que “branco” era uma característica fluida e pouco definida, refletindo não apenas a cor, a origem e o cristianismo europeus, mas também a liberdade e a propriedade.

Esta imagem da chegada dos europeus à África, pintada pelo pintor francês Louis Freret entre 1787 e 1809, mostra uma imagem de contato muito mais positiva do que o relato de Baquaqua. Na pintura, os africanos trazem animais e frutas exóticas para os europeus que chegam. Não há indicação de guerra ou cativeiro.

Um escravo liberto fala

A história de Mahommah Gardo Baquaqua, um ex-escravo levado do Delta do Níger na África, vendido como escravo no Brasil e finalmente libertado com a ajuda de abolicionistas americanos na cidade de Nova York, é um dos poucos relatos de vida escrava do ponto de vista de um escravo. Baquaqua chegou a Pernambuco na década de 1840. Nesse relato, depois de contar a história de sua captura, ele fala sobre a vida a bordo de um navio negreiro.

Seus horrores, ah! quem pode descrever? Ninguém pode descrever tão verdadeiramente seus horrores quanto o pobre infeliz e miserável que foi confinado dentro de seus portais! (…) Fomos empurrados para o porão da embarcação em estado de nudez, os machos amontoados de um lado e as fêmeas do outro; o porão era tão baixo que não conseguíamos ficar de pé, mas éramos obrigados a nos agachar no chão ou sentar; o dia e a noite eram o mesmo para nós, o sono nos era negado da posição confinada de nossos corpos, e nos desesperávamos pelo sofrimento e pela fadiga.

Oh! a repugnância e a sujeira daquele lugar horrível nunca serão apagadas da minha memória; não, enquanto a memória se mantiver neste cérebro distraído, eu me lembrarei disso. Meu coração, mesmo neste dia, adoece ao pensar nisso.

A única comida que tivemos durante a viagem foi milho encharcado e cozido. Não sei dizer quanto tempo ficamos assim confinados, mas pareceu muito tempo. Sofremos muito por falta de água, mas nos foi negado tudo o que precisávamos. Uma cerveja por dia era tudo o que era permitido, e nada mais; e muitos escravos morreram na passagem. Havia um pobre coitado tão desesperado por falta de água, que tentou arrancar uma faca do homem branco que trouxe a água, quando foi levado para o convés e eu nunca soube o que aconteceu com ele. Eu suponho que ele foi jogado ao mar.

Quando cheguei à praia, senti-me grato à Providência por mais uma vez poder respirar ar puro, cujo pensamento quase absorvia todos os outros. Pouco me importava então que eu fosse um escravo, ter escapado do navio era tudo em que eu pensava. Alguns dos escravos a bordo falavam português. Eles viviam no litoral com famílias portuguesas e costumavam nos interpretar. Eles não foram colocados no porão com o resto de nós, mas descem ocasionalmente para nos dizer uma coisa ou outra.

Esses escravos nunca souberam que seriam mandados embora, até que foram colocados a bordo do navio. Permaneci neste mercado de escravos apenas um ou dois dias, antes de ser novamente vendido a um traficante de escravos da cidade, que novamente me vendeu a um homem do campo, que era padeiro e residia não muito longe de Pernambuco.

Quando um traficante de escravos chega, a notícia se espalha como fogo, e descem todos os interessados na chegada do navio com sua carga de mercadorias vivas, que selecionam do estoque aquelas mais adequadas aos seus diferentes propósitos e compram os escravos exatamente da mesma forma que bois ou cavalos seriam comprados no mercado; mas se não houver os tipos de escravos adequados às necessidades e desejos dos compradores de escravos, uma ordem é dada ao capitão para os tipos específicos necessários, que são fornecidos para encomendar na próxima vez que o navio entrar em operação no porto. Grandes números fazem disso um negócio e não fazem mais nada para viver, dependendo inteiramente desse tipo de tráfico (Biografia de Mahommah G. Baquaqua, em Conrad 27-28).

Esta aquarela do pintor inglês Augustus Earle, “Punindo negros em Cathabouco [i.e., Calabouco], Rio de Janeiro”, mostra um negro chicoteando outro, como observa um supervisor branco. Original na Biblioteca Nacional da Austrália, Camberra.

Pessoas escravizadas como mercadoria

Os anúncios a seguir foram selecionados de uma coleção muito maior, todos os quais apareceram em um único número de O Diário do Rio de Janeiro, o principal jornal da cidade, em dezembro de 1821.

A venda:

“Vende-se um escravo crioulo, hábil sapateiro, de muito boa figura, com cerca de vinte anos, sem vícios nem maus hábitos. Seu preço final é de 300$000 réis. Quem se interessar por ele deve dirigir-se à Travessa do Paço n.º 11, lá em cima, onde encontrará alguém com quem falar sobre o assunto.”

“Quem quiser comprar três escravas nativas de Angola, que vieram recentemente daquele lugar, uma que passa e lava roupa, outra padeira e lavadeira, e a terceira também lavadeira, todas com muito boa figura e capacidade de fazer todo tipo de trabalho na casa, deve entrar em contato com Manoel do Nascimento da Mata, Rua Direita nº 54, primeiro andar”

“Vende-se um negro da nação angolana, cerca de 20 a 25 anos, muito bom fabricante de pentes, tanto de casco de tartaruga como chifre de animal”

Procura-se:

“Quem tiver uma menina crioula, bem feita, de seis a oito anos, e quiser vendê-la, deve entrar em contato com Manoel do Nascimento da Mata, Rua Direita nº 54, primeiro andar. Ele deseja comprá-la para levar para fora do país”

Aluga-se:

“Quem estiver interessado em alugar escravos bem treinados no ofício de padeiro, que até poderia fazer todo o tipo de trabalho numa casa, deve dirigir-se à Rua dos Latoeiros, casa n.º 14, ou à loja têxtil da Rua do Cano” ( Conrado 111-12)

O jornal continha anúncios de escravizados encontrados por capitães do mato (homens que saíam para o interior em busca de fugitivos), de fugitivos e de amas de leite. Também foram incluídas na seção de publicidade oportunidades de treinamento para escravizados e avisos sobre roubos. Era comum no século 19 mulheres ricas terem escravas como amas de leite, e os jornais da época estavam cheios de anúncios:

“Aluga-se uma ama de leite com leite muito bom, da primeira gravidez, deu à luz há seis dias, na Rua dos Pescadores, nº 64. Avise que não tem filho” (Jornal do Comercio, Rio de Janeiro, dezembro de 1827)."

“Troca-se um bom preto {moleque} de 15 a 16 anos, acostumado ao campo, bom cozinheiro, faz todo o trabalho da casa, faz compras, lava; por uma ama de leite que tenha bom leite, que também saiba cuidar da casa e que não tenha vícios.” (Jornal do Comércio, dezembro de 1827)."

“Quem quiser comprar uma escrava crioula, ainda menina, com leite bom e em grande quantidade, que deu à luz há vinte dias, deve ir à Rua das Marrecas, de frente para a praça pública” (Diário do Rio de Janeiro, jun. 1821)."

Enquanto as famílias privilegiadas muitas vezes achavam necessário ou desejável usar mulheres escravizadas como amas de leite, elas certamente tinham seus receios, decorrentes tanto das doenças que os escravizados contraíam a bordo dos navios que os levavam ao Brasil quanto da convicção generalizada da inferioridade física dos africanos escravizados. Como um médico francês que trabalhava no Brasil aconselhou as mães a escolherem uma ama de leite, a opinião predominante na época era que:

“Amas de leite brancas seriam preferíveis em todos os aspectos, se neste clima oferecessem as mesmas vantagens que as da raça africana. Estas, organicamente formadas para viver em regiões quentes, nas quais sua saúde prospera mais do que em qualquer outro lugar, adquirem nesse clima uma capacidade de amamentar bebês que o mesmo clima geralmente nega às mulheres brancas (135)."

Uma sociedade mista

Durante grande parte do século 20, o Brasil foi visto como uma sociedade pós-racial, com o mulato mestiço como o ideal nacional. Essa ideia foi avançada pela Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre [traduzido para o inglês como Mestres e Escravos], que representava senhor e escravo vivendo em uma relação simbiótica que, pela mistura de raças, produziu um Brasil mais forte. Este trecho, de um livro publicado em 1894 após a abolição, mostra uma visão diferente do contato entre escravizados e homens e mulheres livres.

"Uma vez eliminada a escravidão indígena, o africano feliz, despreocupado e afetuoso, com a moral primitiva do selvagem, com a amargura própria dos perseguidos, se intrometeu na família, na sociedade, no lar. Balançava a rede de sua dona [sinhá], servia de pajem para seu jovem mestre [sinhô-moço], de criado de seu senhor [sinhô]. Como enfermeira, a escrava amamentou todas as gerações brasileiras; como serva pessoal [mucama], ela embalava todos eles para dormir; como homem, o escravo trabalhou por todas as gerações; como mulher, ela se entregou a todos eles."

"Não havia casa onde não houvesse um ou mais moleques, um ou mais servos [curumins], vítimas dedicadas aos caprichos do jovem senhor [nhônhô]. Eles eram seu cavalo, seu menino de chicote, seus amigos, companheiros, servos."

"As moças, as jovens mulheres, as donas de casa tinham suas mucamas para os mesmos fins, geralmente crioulas ou mulatas."

"A influência depravada desse peculiar tipo brasileiro, a mulata, no enfraquecimento de nosso caráter nunca foi suficientemente analisada ? A poesia popular brasileira nos demonstra isso com sua constante preocupação apaixonada com toda a força de sua atração e influência. O poeta amoroso, com seu estilo lascivo, não se cansa de celebrar seus encantos, que ele disseca minuciosamente com seus desejos ávidos e ardentes. Ele canta sua sensualidade, sua magia, como ele diz, com sua linguagem ridícula, ansiosa e intemperante, sua luxúria, sua feitiçaria, sua timidez, sua coquete, seus encantamentos. Ela atormenta enfaticamente sua inspiração, e os poetas, com Gregório de Matos na vanguarda, fazem dela a heroína de seus versos, empregando a máxima franqueza e sensualidade (223)."

Escravizados fugitivos trabalhando em Palmares, o enorme quilombo em Pernambuco, detalhe de um mapa do artista holandês Barleus, 1647

Resistência vinda de baixo

As ações das próprias pessoas escravizadas desmentem a noção de escravidão como uma instituição benigna. Os escravizados usavam diversas táticas para resistir à servidão involuntária. Tentaram tomar o poder em levantes armados, quebraram equipamentos para sabotar a indústria de seus senhores e fugiram para o sertão. Os fugitivos formaram comunidades chamadas quilombos, que tinham graus variados de autogoverno e autossuficiência. Enquanto o maior e mais famoso quilombo, Palmares, durou 100 anos, todos os outros foram desfeitos pelas forças invasoras holandesas ou portuguesas em 25 anos.

O Sr. Vines, cônsul britânico em Belém, informou sobre a existência de quilombos a oeste do Vale do Amazonas, onde alguns escravizados conseguiram alcançar a liberdade nas selvas do Maranhão, Pará e Amazonas:

Dia 28 de Janeiro de 1854

Sabe-se que existem, há vários anos, assentamentos de negros fugitivos; uma em Santarém, a cerca de 1.300 milhas deste porto, onde se encontram mais de 1.000 escravos fugitivos, entre as serras e brejos nas proximidades das aldeias de Parinha e Monte Alegre, e próximo à cidade de Macapá, são acampamentos de onde os fugitivos facilmente fugir para Caiena. Dentro de 60 milhas da cidade do Pará [Belém] formou-se um assentamento no rio Mujú, do qual uma escrava foi recuperada há algumas semanas; ela escapou durante a insurreição de 1835 e reapareceu com uma grande família; e dentro de um circuito de 2 léguas do Pará há muitos escravos fugitivos.

Os locais desses acampamentos parecem ser cuidadosamente escolhidos para evitar um ataque surpresa.

Diz-se que os fugitivos são industriosos no cultivo de arroz, mandioca e milho indiano, e na fabricação de carvão. Fazem canoas e barcos, ou pequenas embarcações à vela, que são utilizadas para o comércio interior. Traficam com a classe inferior de comerciantes nas cidades vizinhas, trocando o produto de seu trabalho por certas necessidades, como pólvora e tiro, pano e sabão, etc. Alguns deles são frequentemente conhecidos por se aventurarem na cidade do Pará à noite, onde ocasionalmente são levados e reclamados por seus donos, que se esforçam para vendê-los, mas geralmente encontram muita dificuldade em fazê-lo, a liberdade de sua vida errante imprópria eles para a escravidão.

A situação desses acampamentos, sendo naturalmente de difícil acesso, e a conivência dada aos fugitivos pelos negociantes com eles, tornaram abortadas as repetidas tentativas de capturá-los (389-90).

Leitura Adicional

  • Children of God’s Fire, de Robert Conrad, tem muitos outros relatos em primeira mão da escravidão de observadores de várias nacionalidades e profissões. Ele inclui contexto histórico e explicação do argumento e motivação dos escritores.

Sources:

Last updated